Estreia da peça Vestido de Noiva
Descrição
Obra de referência no teatro brasileiro que incorpora as mais notórias conquistas da modernidade cênica, marcando o encontro do texto de Nelson Rodrigues (1912-1980) com uma encenação de excepcional qualidade de Ziembinski (1908-1978) para o grupo carioca Os Comediantes. O texto é retomado por Sergio Cardoso (1925-1973) em 1958, numa nova montagem também histórica, realização que projeta a sua companhia em parceria com Nydia Licia (1926).
O autor situa sua obra como uma trama de "ações simultâneas em tempos diferentes". A partir do acidente de que é vítima, "a protagonista Alaíde, em estado de choque, reconstitui os acontecimentos marcantes de seu passado próximo e se entrega às fantasias do subconsciente, encontrando-se no território do imaginário com Madame Clessi, a mundana de existência aventurosa, com quem se identifica e se compensa do cotidiano insatisfatório. A matéria primordial de Vestido de Noiva é, assim, a projeção exterior da mente de Alaíde", conforme grifa Sábato Magaldi (1927).
O enredo é bastante simples: duas irmãs lutam entre si pela posse de um homem, ele que, casando-se com uma delas, não deixa de cortejar a outra. A morte de Alaíde - sem que fique esclarecido se acidental ou provocada - estende um manto de mistério sobre este triângulo de criaturas, marcado pelos confrontos, a inveja e o rancor. Nem o casamento com o viúvo livra Lúcia, a irmã, da infelicidade.
Para dar concretude aos três planos imaginados por Nelson Rodrigues, o cenógrafo Santa Rosa (1909-1956) projeta uma ampla construção, por ele definida como "arquitetura cênica". Um prodigioso plano de luz, criado por Ziembinski, incumbe-se de fornecer os climas soturnos solicitados pelos ambientes e viabiliza a necessária agilidade para a passagem de um plano a outro, através de cortes bruscos, soluções técnicas consideradas de fundamental importância para o fluxo da peça.
A encenação é aparatosa, mobilizando um grande elenco que ocupa o palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, estreada a 28 de dezembro de 1943. Nos papéis centrais estão Lina Grey (ou Evangelina Guinle) como Alaíde, Auristela Araújo como Mme. Clessi, Stella Perry como Lúcia e Carlos Perry como o namorado/marido Pedro. São intérpretes depurados e ensaiados com extremo rigor por Ziembinski, capazes de passar dos tons leves e maliciosos aos pesados e histéricos, infundindo às criaturas rico registro de gamas e expressões. Este tom expressionista, coerente com o conjunto da realização, é surpreendido naquilo que possui de poético, próprio à exploração das nuanças abarcadas pelo universo do autor.
A montagem eleva o grupo amador Os Comediantes à condição de criar o primeiro espetáculo efetivamente moderno do nosso teatro, apoiado em texto de autor nacional. Merece do crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000) extenso e elogioso comentário: "É provável mesmo que em nenhuma outra peça tenha Ziembinski sido tão feliz na mise-en-scène, como nesta. [...] com intuição admirável, adivinhou e valorizou tudo o que o autor quis dizer, dando à peça uma interpretação das mais lúcidas. O próprio estilo da representação, o próprio jogo dos atores acompanharam fielmente o ziguezaguear do texto, mantendo inclusive a distinção entre os três planos: as cenas desenroladas no plano da alucinação são jogadas num estilo francamente expressionista, que viola deliberadamente a realidade para conseguir maior efeito plástico e dramático, em contraste com as cenas da memória, já mais próximas do cotidiano, e, ainda mais, com as cenas do plano da realidade, que chegam até o naturalismo perfeito da mesa de operação".
Em 1958 a mesma peça conhece, num espetáculo conduzido por Sergio Cardoso para sua companhia, uma surpreendente retomada, agora em São Paulo. O encenador, influenciado pela estética despojada do Théatre National Populaire (TNP), comandado por Jean Villar, idealiza uma cenografia em três planos abstratos, interligados entre si e recortados por uma linha de luz que brota do chão. Tudo o que havia de expressionista na encenação anterior é aqui depurado, resolvido em chave quase realista, onde os atores entram e saem de cena carregando móveis e objetos. Os efeitos trágicos ou as expressões grotescas são reservados para os momentos culminantes do enredo, o que inspira aos diálogos uma densidade muito mais corrosiva e sórdida.
Trata-se de uma leitura que busca na obra não seus efeitos datados ou seu estilo carioca, mas que almeja aquilo que as personagens detêm de essencial como perversidade humana. Nydia Licia como Alaíde, Ana Maria Nabuco como Lúcia, Wanda Kosmo (1930-2007) como Mme. Clessi e Carlos Zara (1930-2002) como Pedro compõem um elenco afinado com tais propostas do diretor, impregnando a cena de figuras densas, sombreadas, desamparadas e amorais. Carlos Zara obtém aquele que é apontado, durante muito tempo, como seu melhor desempenho sobre os palcos.
Essa nova encenação desperta no crítico Décio de Almeida Prado comentários entusiasmados: "Vestido de Noiva assenta-se, portanto, sobre esses dois pilares: apresenta um interesse de natureza inteiramente teatral, o de contar uma história de maneira a nos deixar presos ao seu desenrolar, e penetra num certo mundo obscuro, de sentimentos inconfessados, que nem por ser menos nobre deixa de representar um dos aspectos essenciais da personalidade humana. [...] Sergio Cardoso conseguiu, portanto, realizar o milagre em que ninguém acreditava: reapresentar Vestido de Noiva como se Ziembinski e o expressionismo nunca tivessem existido, isto é, sem se deixar influenciar e também sem procurar fugir a qualquer custo do que fora feito antes. A sua encenação é original no sentido mais raro e genuíno da palavra, o etimológico, no sentido de provir diretamente da origem, de ter voltado ao texto, deixando-se guiar e inspirar exclusivamente por ele".
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