Os Folguedos de Santa Cruz
Os Folguedos de Santa Cruz
Texto por Keila Gomes
Folguedos são manifestações culturais de origem medieval, trazidos para o Brasil pelos portugueses no início do século XVIII, ligados às festividades cristãs com procissões e cortejos nas ruas, com letra, dança e instrumentos musicais.
Tais manifestações foram largamente utilizadas para catequização, como a Folia de Reis e as pastorinhas, enquanto outras, como o congo ou o jongo, maracatu, congada e samba, foram mecanismos utilizados pelos negros para professarem sua religião e cultura, num formato revestido pelo sincretismo, prática comum dos escravizados.
Câmara Cascudo, um dos mais importantes folcloristas do Brasil, define o que são folguedos:
Manifestação folclórica que reúne as seguintes características: 1) Letra (quadras, sextilhas, oitavas ou outro tipo de verso); 2 Música (melodia e instrumentos musicais que sustentam o ritmo); 3) Coreografia (movimentação dos participantes em fila, fila dupla, roda, roda concêntrica ou outras formações); 4) Temática (enredo da representação teatral) (Cascudo, 2000, p. 241).
Os folguedos populares foram e são de grande importância para a construção da identidade nacional, tanto que as manifestações populares são grandes festas e celebrações que movimentam a economia da cidade do Rio de Janeiro desde o século XVIII.
No Rio de Janeiro, as principais manifestações são: a folia de Reis, a ciranda e as cantigas infantis, as pastorinhas, o samba, o jongo e o mineiro-pau. Embora alguns desses folguedos sejam muito valorizados atualmente, já foram duramente reprimidos após o fim da escravidão.
O mais importante folguedo de Santa Cruz era “a festa de Exaltação da Santa Cruz”, que ocorria no mês de maio, considerada por Benedicto de Freitas a mais importante festividade da região, inclusive com vasta participação dos escravizados. Não só esse, mas outros festejos estiveram em Santa Cruz na época colonial por influência jesuítica, como a folia de reis e as pastorinhas, festividades que conseguiram resistir no bairro até o início do século XX e que aconteciam em volta da cruz de madeira, símbolo do poderio jesuíta, separados o sagrado e o profano, com missa, bênçãos, ladainhas e procissões durante o dia e cantorias e danças à noite na praça (hoje chamada de Ruão, centro das atividades festivas na época colonial).
Sabemos que outros folguedos foram criados nas senzalas e moendas de cana de açúcar como cantos de trabalho, denominados “vissungos”. Há um relato de Maria Graham, em seu livro, publicado em 1824 – Diário de uma viagem ao Brasil – , sobre tal canto de trabalho das mulheres escravizadas, na fazenda da Mata da Paciência, sutilmente reprimido por Mariana Eugênia, a proprietária do engenho local.
Enquanto estávamos sentados junto à máquina, D. Mariana quis que as mulheres que estavam fornecendo canas cantassem, e elas começaram primeiro com algumas de suas canções selvagens africanas, com palavras adotadas no momento, adequadas à ocasião. Ela lhes disse então que cantassem hinos a Virgem (Graham, p. 338-339).
Portanto, podemos observar que os escravizados, por mais que estivessem aculturados pela religiosidade cristã, conseguiam preservar influências e elementos que eram notoriamente africanos.
Não devemos esquecer que os folguedos eram dias de festividades, momentos de lazer, escassos na época do Brasil colônia e uma das poucas horas de extroversão da maior parte da população, que era pobre ou escravizada, como cita o escritor Luís Edmundo: “Trata-se, portanto, de um momento de festa, realizada em dias específicos do ano ou não, em que grupos de brincantes se reúnem para cantar, dançar, versejar, dialogar, interagir: tais comemorações constituíam um grito desafiador contra as dificuldades da árdua vida na colônia, representando um exultório das tensões acumuladas contra as autoridades, fossem elas o senhor de escravos, a Igreja Católica ou o próprio governo português, mesmo que muitas vezes viessem revestidos da tradição católica.”
REFERÊNCIAS
FREITAS, Benedicto. Santa Cruz Fazenda Jesuítica, Real, Imperial. Volumes I Edições do Autor. Rio de Janeiro, 1987.
GRAHAM, Maria. ,1990. Diário de uma viagem pelo Brasil. Trad. Américo Jacobina Lacombe. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1990.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Global, 2006.
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