Música Sacra e Profana
Música sacra e profana
Texto por Keila Gomes
Em meados do século XVII, foi ordenado que se ensinasse canto para as pessoas residentes nos aldeamentos e para a escravaria no Brasil colonial. A música sempre foi um valor civilizatório tanto para os povos originários quanto para os grupos africanos que vieram para a colônia. Portanto, foi natural a aptidão que os cativos tiveram em relação à música e para gostarem dos cânticos e ritos sacros.
Podemos afirmar que o primeiro Conservatório de Música foi em terras santa-cruzenses. Estimulados pelos padres na sublime arte que “Acalma a fúria e exalta o amor”, os homens de cor começam a ter aulas com os jesuítas, tendo o testemunho do Bispo do Rio de Janeiro D. Antônio do Desterro que, em carta assinada ao Rei D. João V, comenta a atividade da orquestra imperial,
Mesmo com poucas fontes da época ou documentos oficiais que explicam o motivo do seu início, temos alguns relatos de viajantes que ficaram impressionados com o canto das mulheres negras, bem depois dos jesuítas. O geógrafo veneziano Adrien Balbi, quando visitou o Brasil no período joanino, ficou maravilhado com o coral que se apresentou no palácio de São Cristóvão, principalmente pela voz de duas mulheres negras que compunham o coral de Santa Cruz.
Não somente os escravizados eram estimulados a cantar como a tocar instrumentos também. A aprendizagem musical era um mecanismo de apaziguamento e identidade comunitária, haja vista que os escravizados já vinham de África com alguma tendência musical fortemente enraizada no seu cotidiano mostrando a música nos cantos de trabalho, danças e rituais religiosos que se configuravam também como uma arma de resistência cultural. Assim como os indígenas e seus rituais que contribuíram tanto com a música brasileira, podemos mencionar o lundu, maxixe, samba, coco de roda, manifestações musicais que bebem das características de ambas as etnias.
Entretanto a imersão musical desses homens de cor está acometida pelo lado erudito, dispensando quaisquer características africanas. E mesmo utilizando canções profanas, seus atributos principais serão os cânticos sagrados e religiosos.
Por mais que a música sacra estivesse presente nos repertórios inacianos, não podemos deixar de mencionar que não temos registros do costume de músicas profanas no interior da fazenda. Porém podemos imaginar de maneira hipotética que a aptidão dos escravizados para os instrumentos musicais seria observada inicialmente, e já acima citado, nos cantos de trabalho e seus encontros em dias de folga. Conforme no livro de Benedicto de Freitas, a “formação do conjunto musical para acompanhar cerimônias litúrgicas e profanas”, essas nos autos encenados como auxiliar à catequese. Entende-se por música profana quaisquer músicas sem a natureza religiosa.
A orquestra era composta por adolescentes do gênero masculino e feminino divididos respectivamente em execução de instrumentos e canto. Um fato curioso é que eles não trabalhavam nos serviços gerais da fazenda, dedicando-se integralmente ao estudo dos instrumentos e impostação de voz. Apresentavam-se em missas, festas e celebrações de irmandades. Foi constatada a relação de instrumentos no inventário de 1759 após a expulsão dos inacianos: três rabecas, um cravo, duas flautas, oboés, um baixo e outros instrumentos utilizados, que provam o movimento artístico-religioso da Fazenda.
Mesmo nos períodos de decadência da fazenda não foi cessada a orquestra musical, pois era mantida por outros padres, estando em destaque o Padre José Maria Nunes Garcia, descendente de escravizados e considerado um dos maiores compositores de música erudita, agradando ao príncipe regente D. João, e que a tornou oficial, visto que a chegada da corte se caracterizou pela implantação de civilidade europeia e a música se torna privilegiada pelas mudanças ocorridas no período joanino. Em 1817, o prédio fora reformado e foram constatadas inúmeras festas e saraus na sede oficial e em Sepetiba, onde possivelmente os escravizados tocavam valsas, modinhas e quadrilhas, fato esse que prova que tanto o coral quanto a orquestra não se limitava às músicas litúrgicas, e sim tinham vasto repertório profano.
A Orquestra Imperial e o coral findam-se com o advento da república, deixando seus músicos sem empregos. Tal fato será constatado pela manifestação ocorrida no início do século XX, quando os músicos desempregados protestam com instrumentos de papelão.
REFERÊNCIAS
FREITAS, Benedicto. Santa Cruz: Fazenda Jesuítica, Real, Imperial. Volumes I e II Edições do Autor. Rio de Janeiro, 1987.
A presença do fagote na música de concerto brasileira – 1ª parte: séculos XVII ao XIX Aloysio Fagerlande - Revista Digital UFRJ
0 comments
Sign in or create a free account