Escravizados na fazenda Jesuítica de Santa Cruz
Escravizados na fazenda Jesuítica de Santa Cruz
Texto por Keila Gomes
Os escravizados da Fazenda de Santa Cruz foram introduzidos na região a partir do século XVII, pelos Jesuítas, na forma de mão de obra para os vários trabalhos que existiam nas terras anexadas por venda e doações, formando, inclusive, a maior propriedade deles na América.
A princípio, a escravização indígena era proibida na propriedade inaciana por determinação da Bula Papal escrita pelo Papa Paulo III, com exceção daqueles grupos que não aceitavam a catequização. No entanto, nada é falado sobre a escravização negra, pelo contrário. Existem vários relatos de que esta era vista como algo natural no qual se baseavam teorias como a Maldição de Cam (narrativa propagada por cristãos, muçulmanos e judeus como uma explicação para a pele negra e para justificar a escravidão).
A inculpabilidade dos jesuítas na obtenção de escravizados negros ia para além do campo dos valores cristãos. A mão de obra africana era fundamental para o desenvolvimento das fazendas da Companhia de Jesus e em especial a de Santa Cruz, visto que, mesmo conseguindo vastas terras por meio de doações e vendas, tal fato não era o bastante, segundo Paulo Assunção em seu livro – Negócios Jesuíticos – o cotidiano da administração dos bens divinos:
Sua utilização era fundamental para o universo da vida colonial e, por decorrência, para as atividades dos religiosos (...). A mão de obra escrava era fundamental; sem ela o modelo produtivo não vingaria, aferiria a lucratividade desejada (2004, p. 321-4).
Por mais que se tivesse a ideia de “Cativeiro justo” defendida pelos padres Antonil e Benci, e que tais padres jesuítas escreviam que os negros mereciam um tratamento mais humano com direito à saúde, vestuário, alimentação e moradia, podemos analisar que os escravizados da Fazenda de Santa Cruz tinham uma maior possibilidade de relações comunitárias e familiares. Porém, não devemos esquecer que eles não tinham controle de suas próprias vidas, continuavam precificados e existiam castigos caso fosse necessário. Sua obediência e disciplina se justifica pelo projeto de colonização e evangelização jesuíticas que ia além do campo das ideias, com interesses muito amplos, sobretudo econômicos.
Por consequência desses fatores, durante muito tempo essa escravização foi explicada como uma escravização “mais branda” pautada no sistema ideológico, econômico e sobretudo social, que fizeram os escravizados serem, acima de tudo, homens e mulheres cristãos.
Os Jesuítas compravam escravizados dentro da estratégia demográfica baseada no equilíbrio sexual: homens e mulheres de “idade casadoura” (entre 14 e 12 anos) com o intuito de formar casais. Outra técnica observada é que os escravizados tinham nome e sobrenome que não acompanhavam os de sua família descendente, mas provavelmente na forma de apadrinhamento, sendo totalmente apagada sua procedência, totalmente ligada ao silenciamento de qualquer resquício africano e à inserção do batismo cristão.
A estimulação do casamento entre os escravizados se justificava pelo fato de condenarem o concubinato nas senzalas e considerar uma estratégia para a reposição de mão de obra por meio dos nascimentos, mas esses não são os únicos exemplos de solidariedade dos jesuítas com outros interesses, os escravizados trabalhavam apenas três dias, podendo ter suas próprias roças, e os escravizados fiéis podiam ter até 10 cabeças de gado. Se analisarmos economicamente, temos toda a escravaria adulta produzindo o seu próprio alimento, e portanto não oneraria os gastos alimentícios que a fazenda teria com as 1.016 pessoas que existiam, segundo o inventário do Sequestro feito em 1759.
Concluímos observando que as relações sociais, econômicas e afetivas dos escravizados da Fazenda de Santa Cruz sob a administração inaciana diferem das demais analisadas nas outras partes do Brasil. Contudo existem outras formas de opressão e manipulação sem o chicote ou o pelourinho. Como diz Carlos Engemann: “Quanto mais os cativos tinham e, mais do que isso: Quanto mais julgavam ter, mais doloroso seria perder tal tratamento. Pode ser que nas mãos dos padres e administradores, a venda... fosse o açoite mais temido pelos negros de Santa Cruz.”
REFERÊNCIAS
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1982. (Coleção Reconquista do Brasil).
ASSUNÇÃO, Paulo. Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: EdUSP, 2004.
ENGEMANN, Carlos. Santa Cruz: de legado dos jesuítas à pérola da Coroa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. p. 249-254.
FREITAS, Benedicto. Santa Cruz: Fazenda Jesuítica, Real e Imperial. Vol. 1. 1567–1759. Rio de Janeiro: Edições do Autor, 1985.
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio, em nome do Rei. Uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; Garamond. 1999.
SOUZA, Sinvaldo do Nascimento. Ponte dos Jesuítas: 250 anos do monumento histórico – 1752-2002. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, 2001.
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