Rebelião dos escravizados
Rebelião dos escravizados
Texto por Keila Gomes
A Fazenda de Santa Cruz foi palco de inúmeras revoltas dos escravizados entre os séculos XVIII e XIX. Roubos de gado, fugas recorrentes, formação de quilombos em áreas de difícil localização foram realidades constantes na enorme propriedade. Após a expulsão dos padres jesuítas, em 1759, ao lado da grande quantidade de pessoas escravizadas, a desordem perturbou a administração dos Vice-Reis. Isso provocou precariedade no fornecimento de alimentos e roupas para os cativos, motivando elevado aumento de conflitos no latifúndio santa-cruzense.
As incessantes rebeliões dos escravizados e, consequentemente, os conflitos e enfrentamentos, oscilavam conforme as administrações da Fazenda e de seus respectivos Superintendentes, sendo o momento mais agitado o início de 1808. A mudança da dinâmica dos poucos direitos fornecidos pelos padres inacianos e o elevado aumento dos castigos físicos e coerções romperam a costumeira e relativa “paz e obediência” dos escravizados da fazenda.
Essa situação de tranquilidade acabou devido à expulsão dos jesuítas no século XVIII, quando a administração da fazenda passou a ser controlada pela Coroa. Os escravizados, por estarem impossibilitados de obter ferramentas de sobrevivências, passaram a praticar frequentes roubos de bois e iniciaram evasões para quilombos localizados em morros próximos à Fazenda. Os quilombos eram estabelecidos, comumente, em lugares com abundância de água potável.
Em 1803, descobriu-se que alguns escravizados tinham tido contato com os quilombolas de áreas próximas e que, nesse mesmo ano, haveria um levante dos pretos na Fazenda da Mata da Paciência, propriedade de João Francisco da Silva e Sousa, que fazia divisa com a Fazenda de Santa Cruz.
Houve um aumento de castigos físicos infligidos aos cativos e retrocessos na permissão que sempre lhes foi outorgada de plantar duas vezes na semana para consumo próprio. Foi colocada a intenção de venda das roças de Itaguaí e Piaí, lugar de plantação de mandioca para os escravizados, fato que intensificou a fome dos escravizados.
O auge dos conflitos se deu na administração de Leonardo Pinheiro de Vasconcelos, momento em que foram criados alguns grupos armados, para defender o poder vigente. O exército foi acionado, sendo autorizado a matar qualquer escravizado que tentasse fugir da Fazenda. Além do aumento das punições e da violência contra as pessoas escravizadas, havia alta atividade de aluguel de escravizados, o que provocava a brusca separação das famílias formadas sob a administração jesuítica. Isso rompia violentamente um costume e uma tradição já inseridos no cotidiano dessas comunidades escravizadas.
Atrelado ao fato de que a quantidade elevada de escravizados, com cerca de 1468 pessoas vivendo no território amplo da Fazenda, o ambiente ficou mergulhado na falta de controle, o que dificultava o fim das insurgências sem uma negociação com os cativos.
Nessa mesma época, haveria conflitos isolados entre os chamados “chinas” (chineses), homens que vieram de Macau para cultivarem chá no sítio Morro do Chá, com alguns escravizados da Fazenda da Mata da Paciência; no fim, envolveram-se em conflitos com os próprios escravizados da Fazenda Real da Santa Cruz.
Em 1817, um grupo de pretos aquilombados invadiu a Fazenda, matando um escravizado que provavelmente era um delator das ações quilombolas para os feitores, desmistificando o clima de paz que muitos historiadores colocam sobre a Fazenda.
O fim das insurgências na região se deu com a saída de Vasconcelos e Dom João VI convidando Manoel do Couto Reis para voltar à administração da Fazenda. Percebe-se que a antiga administração jesuítica era necessária, não somente para dar dignidade e humanidade para os cativos, mas para conseguir amenizar conflitos e revoltas existentes na fazenda. As poucas vantagens proporcionadas pelo sistema inaciano eram uma ferramenta psicológica que a Companhia de Jesus sabia muito bem usar, de forma muito eficaz. E, assim, copiado de certa forma do sistema jesuítico, o controle da escravaria seguiu pelo período joanino (1808-1821) e por todo o Império brasileiro.
Conheça mais:
Morro do Chá | Facebook: Antigo Santa Cruz
REFERÊNCIAS
VIANA, Sônia Bayão Rodrigues. A fazenda de santa cruz e a crise do sistema colonial (1790-1815). Revista de História, v. 49, n. 99, p. 61-96, 1974.
PEDROZA, Manoela da Silva. Capítulos para uma história social da propriedade da terra na América portuguesa e Brasil: O caso dos aforamentos na Fazenda de Santa Cruz (Capitania do Rio de Janeiro, 1600-1870). Tese (doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2018. p.463-507
ADMINISTRAÇÃO da Fazenda de Santa Cruz. In: DICIONÁRIO da Administração Pública Brasileira do Período Colonial (1500-1822), 2011. Disponível em: https://goo.gl/bJkH3a. Acesso em: 22 de setembro de 2022.
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